Com mais de 10mil casos, criação de bovinos é o mais frequente em trabalhos análogos à escravidão
Nos últimos 20 anos, 10.587 pessoas foram resgatadas de trabalho análogo ao de escravo, representando 22,8% dos registros
Por Chananda Lipszyc Buss, Eric Rodrigues, Gabriel Arouca Leão e Luísa de Cássia

Segundo o SmartLab, sistema de dados do Ministério Público do Trabalho e da Organização Internacional do Trabalho (OIT Brasil) que reúne informações sobre trabalho escravo, o setor econômico com mais resgatados é o de criação de bovinos, com 22,8% de todos os casos entre os anos 2004 e 2022. Considerando apenas o ano passado, os cinco segmentos com mais casos são trabalhadores volantes da agricultura, da pecuária, da cana-de-açúcar, de árvores frutíferas e do café, somando juntos mais de 60% das pessoas encontradas em situação análoga a escravidão.
Ainda que não seja o setor com o maior número de casos ao longo desses anos, crescem as ocorrências no cultivo de cafezais. Nos últimos cinco anos, a cultura do café teve o maior número de resgatados, ultrapassando 1.000 pessoas. Jorge Ferreira dos Santos, coordenador geral da Articulação dos Empregados Rurais de Minas Gerais (ADERE-MG) e participante da direção estadual da Central Única dos Trabalhadores de Minas Gerais (CUT-MG), comenta: “quando falo de café é sempre uma polêmica, porque estamos falando de grandes marcas. E o povo continua comprando”.
Quais são as empresas que usam trabalho escravo?
Ainda no ramo de café, a multinacional Starbucks é uma das grandes companhias que enfrenta processos por manter os trabalhadores em condições análogas à escravidão. A organização Repórter Brasil publicou, na investigação “Por trás do café da Starbucks”, informações sobre os casos.
Dentre os descumprimentos da lei encontrados nas fazendas, estavam o não fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), não custeamento de despesas de transporte e alimentação para os safristas, informalidade, exposição a condições climáticas sem roupas de cama adequadas, falta de água potável e banheiros no local de trabalho.
Outra marca famosa de bebidas colocada na Lista Suja é o grupo Heineken, mais especificamente a cervejaria Kaiser. A transportadora contratada pela empresa, Sider, foi autuada em 2021 por jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho e moradia. Os motoristas, 22 venezuelanos e um haitiano, foram resgatados nos municípios paulistas Jacareí e Limeira.
Conforme o parágrafo 3º do artigo 5° da lei 6019, que regulamenta terceirizações, “é responsabilidade da contratante garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores, quando o trabalho for realizado em suas dependências ou local previamente convencionado em contrato”.
No cenário alimentício, a Seara, marca de frangos e suínos da JBS, também foi acusada por condições de trabalho degradantes e jornadas extenuantes. O caso aconteceu em Sidrolândia, no Mato Grosso do Sul, também com funcionários terceirizados. A assessoria de imprensa declarou, em nota, que os produtores terceirizados foram desligados da empresa assim que a atualização da Lista Suja foi divulgada.
De estado em estado
Em dezembro de 2003 era publicada no Diário Oficial da União a lei de número 10.803, que alterava a redação do artigo 149 do Código Penal brasileiro. A medida veio para estabelecer penas ao crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo e indicar as hipóteses em que isso se configura.
O artigo 149 do Código Penal brasileiro define como trabalho análogo ao de escravo a ação de “Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
Desde então, passaram-se quase 20 anos e a realidade que o Brasil encontra é de mais de 50 mil pessoas resgatadas de condições de trabalho análogo à escravidão. Isso é o que afirma o Radar SIT, ferramenta da Secretaria de Inspeção do Trabalho, que, entre outras funções, monitora o número de trabalhadores resgatados.
Para cada um dos “empregadores” que cometeram esse crime, a pena é de dois a oito anos de prisão, multa e mais a pena correspondente à violência praticada. Quando as vítimas são crianças, adolescentes, ou o crime é cometido por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem, a pena é aumentada pela metade. Ao menos assim deveria ser.
Jorge Ferreira dos Santos, coordenador geral da Articulação dos Empregados Rurais de Minas Gerais (ADERE-MG) e participante da direção estadual da Central Única dos Trabalhadores de Minas Gerais (CUT-MG), disse em entrevista a esta reportagem que, mesmo tendo uma das melhores leis contra o trabalho análogo ao de escravo, o Brasil ainda peca na aplicação da pena.
“Você não vê o empregador sendo preso. Essa é uma crítica que fazemos, se for um jovem ou um cidadão preto, da periferia, que for suspeito de cometer um crime, ele vai preso. Aí você tem homens ricos, brancos, que cometem um dos piores crimes do mundo, a violação e roubo da dignidade de pessoas, da dignidade humana, e você não vê ninguém sendo preso”, comentou Jorge.
Analisando os dados do Radar SIT, é possível perceber que Minas Gerais e Pará lideram o ranking de estados que mais são encontrados trabalhadores em situação análoga à de escravo. Entre o ano de 2004 e junho de 2023 (última atualização do Radar), foram resgatadas 8.875 pessoas em Minas Gerais e 8.641 no Pará. Em seguida, entram Goiás, com 4.996, Mato Grosso, com 3.803 e Mato Grosso do Sul, com 2.982.
É possível que os números sejam ainda piores. Há uma defasagem em diversos estados pertencentes ao norte e nordeste brasileiros, no qual o Radar SIT não diz se houve ou não trabalhadores resgatados em situação de trabalho análogo à de escravo.
Dos 20 anos analisados, o Amapá só apresentou dados para 2012, 2013, 2014 e 2017, somando 45 resgatados. O Sergipe conta com 14 vítimas, divididas entre 2021 e 2022. Já em relação ao Pará, há dados para todo o período.
Esse descompasso entre os estados pode ser reflexo de uma política de sucateamento dos órgãos fiscalizadores do trabalho. O coordenador geral da ADERE revelou à reportagem que quase metade das vagas de auditores-fiscais do trabalho estão desocupadas. Em março deste ano (2023), a Agência Brasil afirmou que das 3.644 vagas de auditores, apenas 1.949 estão ocupadas.
O último concurso de contratação de auditores-fiscais do trabalho foi feito pelo Ministério do Trabalho e Emprego — MTE — em 2013. Levou 10 anos para o governo brasileiro anunciar um novo concurso. A promessa é que ainda em 2023 seja lançado um edital com 900 vagas para auditor-fiscal, o que não cobre o déficit, mas o reduz.
Este sucateamento dos órgãos fiscalizadores, que perpassou diversos governos, foi agravado durante o governo Bolsonaro, no qual o MTE foi dissolvido. A conta se torna simples, sem fiscalização, sem dados. Ou seja, por trás das 50 mil pessoas encontradas, podem ter muitas outras ainda trabalhando sob condições desumanas.
“Temos ainda o Ministério do Trabalho que faz esse combate com duras penas. É um desafio para o enfrentamento do trabalho análogo à escravidão”, diz Jorge dos Santos.
Outra ferramenta que poderia ser utilizada para a redução dos altos números de pessoas submetidas ao trabalho análogo ao de escravo e à representação mais fiel dos números em cada estado seria a regulamentação da Emenda Constitucional n.º 81, de 2014.
Esta emenda alterou o artigo 243 da Constituição Federal e passou a determinar que toda propriedade, rural ou urbana, quando flagrada com trabalho escravo, seria expropriada e destinada à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário.
Considerando que a massiva maioria do trabalho análogo à escravidão no Brasil é encontrada no campo — quase 80% dele, considerando os anos de 2009 a 2023, quando são contabilizados o crime em meio urbano no Radar SIT — entende-se porque a Emenda Constitucional nº 81 não é regulamentada. Em um Congresso Nacional dominado pelo amplo poder da Bancada Ruralista, não é de se espantar que uma medida que expropria propriedades rurais sofra resistência.
Quando ainda era presidente, em 2019, Jair Bolsonaro se pronunciou a respeito daquela emenda e, conforme noticiado pela Folha de S. Paulo, disse:
“Quem pratica trabalho escravo tem que ter uma punição. Agora, por outro lado, suponhamos que o cara estava acorrentado lá, era o trabalho escravo, você tem que punir o Seu João, com 80 anos. Ao você expropriar, você puniu a Dona Maria, que estava há 60 anos trabalhando com ele na fazenda, os filhos, que estavam há 40 anos trabalhando, os netos, que estavam há 20 anos trabalhando. Você pune todo mundo. A punição tem que atingir você, não todo mundo”
Clicando no mapa abaixo, feito pela equipe de reportagem com os dados do Radar SIT, o leitor poderá ver os números de cada estado no período de 2004 a 2023.
No Paraná, as operações estão concentradas no interior do estado. A maioria dos casos registrados no SmartLab apontam para as áreas rurais que lidam com suínos, frangos, carvão e pedreiras. Nos últimos 20 anos, foram mais de 1200 de trabalhadores resgatados. Em áreas urbanas, essas situações estão presentes em redes de fast-food e serviços, como é descrito pelo advogado trabalhista Everson Fasolin.
“Eles trazem o pessoal de cidades distantes para alojamentos que não têm condições adequadas, às vezes com apenas um colchão. Acompanhei um caso de uma mulher que trabalhou por alguns meses numa grande empresa de fast-food, num shopping de Curitiba. Ela dormia num quarto com colchão, sem banheiro e nem água potável”, disse o advogado.
Tráfico de pessoas
A Organização das Nações Unidas (ONU) define, no protocolo de Palermo, o tráfico de pessoas como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força, ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade, ou à entrega, ou aceitação de pagamentos, ou benefícios para obter consentimento de outra pessoa com autoridade sobre outra, para fins de exploração”.
Em março de 2004, por meio do decreto n.° 5.017, o Brasil seguiu o protocolo de Palermo para incorporar o tema na legislação. O Código Penal brasileiro apenas incluiu o trabalho em condições análogas a escravidão como uma das motivações para o tráfico de pessoas em 2016, com o artigo 149-A. Nos artigos revogados, era compreendida somente a exploração sexual. Foi divulgada, também em 2016, a lei n.° 13.344, com o intuito de prevenir a prática.
Segundo o relatório da fiscalização, a Inspeção do Trabalho resgatou, desde que a lei entrou em vigor, 4.888 trabalhadores traficados para trabalho análogo à escravidão. Os dados reportam que 93% das vítimas são homens, 85% de etnia preta ou parda. Entre 13 e 17 anos, 46 menores de idade foram resgatados nessas condições.
O Governo Federal recomenda que denúncias sejam realizadas pelo Disque Direitos Humanos (Disque 100), gratuito para todo o Brasil. Também pode ser acionado o Central de Atendimento à Mulher, por meio do 180.
Quem são as vítimas?
A exploração desumana do trabalho está espalhada por todo o país e abrange diversas pessoas. Mas há um perfil predominante que está intimamente ligado às marcas da desigualdade. As disparidades de desenvolvimento humano, oportunidade de trabalho e índice de escolarização são alguns dos fatores que determinam esse perfil.
Perguntado sobre quem são as vítimas do que está definido no Código Penal, Jorge dos Santos traçou a linha em duas frentes, a do campo e a da cidade.
“[Para o campo] é um grupo composto por trabalhadores jovens, homens e pretos. São pessoas que vêm do nordeste, norte e do Vale do Jequitinhonha mineiro. São pequenos agricultores, camponeses pobres e de baixa escolaridade. Na [área] urbana, o perfil não muda quase. A diferença é que você começa a encontrar mais mulheres. Você encontrará, no serviço doméstico, mulheres pretas. A ampla maioria resgatada no país são mulheres pretas. E aí, como falamos, é a reprodução das servas da Casa Grande.”
O Ministério Público do Trabalho (MPT), junto da Organização Internacional do Trabalho no Brasil (OIT Brasil), criou a plataforma SmartLab. Uma das funções do sistema é o monitoramento do trabalho escravo e tráfico de pessoas no país.
Ao se tratar da raça dos resgatados entre 2004 e 2022, o SmartLab aponta que 64% deles são negros, sendo aproximadamente 50% pardos e 14% pretos. Com relação à escolaridade, nota-se que é baixa, com 34,3% tendo até o quinto ano do Ensino Fundamental completo e 27,6% analfabetos.
Levando o olhar para o gênero e a faixa etária, tem-se mais de 90% sendo do gênero masculino e, desses homens, aproximadamente 46% têm entre 18 e 29 anos.
Uma característica marcante é a diferença entre o lugar de nascimento dos resgatados e os locais onde eles foram encontrados. Os locais de resgate são marcados pela alta produção, em especial agropecuária, fazendo um arco que vai da região fronteiriça entre Minas Gerais e São Paulo, passa por todo o centro-oeste, e se encerra nos estados do Pará e Maranhão.
Quando colocado sob análise a origem dessas pessoas, o arco se inverte. Os maiores números passam por Minas Gerais, com maioria no norte do estado, Bahia, Pernambuco, Piauí, e Maranhão. O algo em comum entre esses locais são os índices de desenvolvimento socioeconômico mais baixo, que, ao longo dos anos, contribuem para tornar os trabalhadores vulneráveis à exploração.
Clicando no mapa abaixo, o leitor conseguirá analisar, por estado, a origem dos trabalhadores resgatados. Vale ressaltar que os dados relativos à naturalidade dessas pessoas só começaram a ser coletados em 2003, ano em que se iniciou o pagamento do benefício do seguro-desemprego para resgatados. O mapa não abrange 2023 por não haver dados deste ano ainda.
Além dos trabalhadores de origem brasileira, ainda há um percentual referente às pessoas de outros países. Deles, segundo o SmartLab, 42,5% são da Bolívia e 24% do Haiti. Esses dados são referentes aos anos de 2003 até 2022.
O perfil traçado pelos dados coletados pelo governo brasileiro vão de encontro com a fala de Jorge dos Santos e mostram como as condições de vulnerabilidade socioeconômica são um fator decisivo para o poder de aliciamento dos trabalhadores e, consequentemente, a ida para situações análogas à escravidão.
Para além dos números
José Pereira (nome fictício), 52, trabalha em lavouras desde os 18 anos. No início de 2023, foi resgatado de uma situação laboral análoga à escravidão. Não foi somente no emprego do qual foi retirado, no entanto, que ele passou por situações criminosas. “Durante o meu tempo de viagem a trabalho eu sempre encontro coisas que não são adequadas para o trabalhador”, diz.
Trabalhando em lavouras de cana-de-açúcar e de café, José conta que os problemas iam muito além dos baixos salários. “Já trabalhei num lugar em que tinha que tomar banho na água fria, porque não tinha chuveiro quente. Não tinha um banheiro adequado. Às vezes o piso também não era bom. Na comida a gente pagava um preço fora de base, no final do mês não sobrava quase nada do pagamento para mandar para a nossa família.”
A jornada de trabalho extenuante é outro aspecto destacado por José. Ele conta que, na lavoura de café, começava a trabalhar às 6h30 e em alguns dias só voltava para casa depois das 17h. Paravam apenas alguns minutos para almoçar, para não atrapalhar o rendimento. Eram vigiados por um dos trabalhadores, que recebia um salário especial para supervisioná-los, além de trabalhar na colheita. “O cara estava ali, no meio da gente, como trabalhador, mas não podemos confiar nele, porque ele estava mais do lado do patrão do que do lado dos peões”, relata.
Um dos casos mais marcantes para José é quando ele sofreu um acidente no trabalho. Na época, ele trabalhava cortando cana e acabou machucando o olho. Quando foi ao hospital, ele precisou passar por um procedimento cirúrgico e foi orientado pelo médico a pedir que o patrão assinasse um documento de seguro-desemprego. O patrão fez outro documento, e o médico explicava, em todas as trocas de curativo, que o papel não continha as informações corretas. Foram muitas as tentativas de falar com o chefe, até que José desistiu e pegou somente o atestado médico. Até hoje ele sente coceira e desconforto no olho afetado.
Outra situação marcante foi quando, num dia de chuva, José escorregou e caiu em cima de um facão, cortando o dedo. Levou 14 pontos e recebeu 12 dias de atestado médico. Quando foi falar com o patrão, para quem trabalhava sem registro na carteira, precisou insistir para que ele aceitasse o documento do médico. Depois de muita insistência, ele pagou as 12 diárias. “Ele estava morrendo de medo, porque sabia que eu poderia exigir mais coisas dele. Mas eu ainda era bobo, não sabia correr atrás dos direitos”, explica. José relata que, ainda que o acidente tenha acontecido em 1997, ainda sente dores no dedo.
A vítima conta que, antes de conhecer os órgãos governamentais responsáveis, procurava sindicatos do trabalhador nas cidades mais próximas às fazendas nas quais trabalhava. Mas as denúncias eram dificilmente exploradas. “Como era dali de perto mesmo, o patrão dava um jeitinho, ficava por isso mesmo e a gente não ganhava grandes coisas na causa. Acredito que muitos patrões conseguiram passar a gente de bobo naquela época”, expõe.
O regaste (e quando ele não vem)
Em 2023, até o dia 14 de junho, segundo dados do Radar SIT, ferramenta do Portal da Inspeção do Trabalho, 1443 trabalhadores em condições análogas a escravidão foram retirados dos locais de trabalho. Somente no mês de agosto, a Operação Resgate III foi responsável por resgatar 532 pessoas nessa situação. Essa foi a maior ação para combater o trabalho escravo e o tráfico de pessoas no país.
Um caso da operação foi em uma fábrica de alho em Rio Paranaíba, Minas Gerais. Os 97 trabalhadores não tinham carteira assinada e atuavam em condições precárias. Dessas pessoas, seis eram adolescentes, incluindo uma grávida. Outro resgate foi de uma idosa de 90 anos que estava há 16 anos sem carteira assinada atuando como trabalhadora doméstica.
Apesar disso, nem todas as pessoas encontradas são efetivamente resgatadas do local de trabalho. De acordo com dados do Radar SIT, no ano passado, das 2587 pessoas em situações análogas a escravidão encontradas, mais de 100 não foram resgatadas. Essa mesma questão se repetiu nos anos anteriores. Já no ano de 2023, pelo menos até 14 de junho, todas as pessoas encontradas foram retiradas do local.

Jorge Ferreira dos Santos conta que mesmo quando há o resgate, às vezes a questão não é resolvida. “Estamos cansados de resgatar a mesma pessoa, duas, três, cinco vezes em anos diferentes. Tenho uma família no Vale do Jequitinhonha que eu já resgatei o pai dessa família duas vezes, resgatei um dos filhos dele cinco vezes do crime de trabalho escravo”, relata.
Os mecanismos de combate
A fim de estruturar a atuação das instituições foram concebidas duas edições do Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (PNETE), sendo a primeira em 2003 e a segunda em 2008. Elaborado pela Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), o plano consiste em 66 ações necessárias para combater as irregulares no país e introduzir politicas públicas. A primeira edição atingiu 67% das metas estabelecidas, enquanto a segunda alcançou 73%
O plano é dividido em cinco eixos temáticos: Ações gerais, sendo mais amplo e primordial; Enfrentamento e Repressão, ligado às operações resgate; Reinserção e Prevenção, representado pela ala do serviço social e das atividades estratégicas; Informação e Capacitação, que consiste em campanhas informativas internas; e Repressão Econômica, a qual é a inclusão de notificados em “listas sujas” que dificultam o acesso a créditos e outros benefícios.
O fluxo nacional de atendimento é composto por duas etapas, que vão desde a denúncia e o planejamento até o resgate e o pós-resgate das vítimas. A organização sistemática estabelecia no plano possibilita uma participação efetiva de diversas áreas no cumprimento dos trâmites.
A fase inicial consiste na recepção das queixas, que podem ser registradas no Sistema Ipê (portal), por meio do Disque 100 ou através do Ministério Publico do Trabalho (MPT). Os órgãos que receberem denúncias devem encaminhar para a Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), que irá examinar os registros e planejar as operações em conjunto com o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM).
O resgate das vítimas consiste numa operação orquestrada com agentes da esfera trabalhista, judiciária e social. Nesta etapa, são realizadas notificações dos investigados, coletas de provas com imagens do campo e prestação de serviços sociais para as vítimas com acesso às políticas públicas da Previdência (inclusão no seguro desemprego) e social (direcionamento para as casas de passagem).

Em agosto deste ano, ocorreu uma ação nacional denominada Operação Resgate 3, que resgatou mais de 500 trabalhadores submetidos ao trabalho análogo ao escravo. Considera a maior operação do Brasil, contou com o mais de 70 equipes na linha de frente em 22 estados e no Distrito Federal. Segundo o Ministério Público do Trabalho (MPT), os ressarcimentos às vítimas chegaram a R$ 5 milhões.
Para o advogado trabalhista, Everson Fasolin, a legislação brasileira tem uma perspectiva protetiva em comparação com outras nações. “É claro que, às vezes, a aplicação não é efetiva. Em termos de punição, são usadas condutas que exigem uma compensação financeira por danos morais, por exemplo. No entanto, a punição para o empregador no âmbito trabalhista, sobre o trabalho análogo à escravidão, praticamente não existe.”
A equipe de jornalismo entrou em contato com o Detrae e o MPT para obter informações adicionais sobre as operações e enviou questionamentos, mas não obteve respostas até o fechamento da reportagem.